As memórias da minha infância são como fios de cristal que se entrelaçam e desenham um baú. Indescritível em seus contornos e imensurável em suas medidas, ele cabe num precioso canto do meu coração e, quando sem hora nem lugar marcados, sopra em mim a brisa que resgata as lembranças, e com ela se forma uma revoada de risos e aconchegos.
Por entre o murmurinho de vozes femininas espreita a sinuosidade da nuvem que emerge da xícara! É de fina porcelana (chamada de casca-de-ovo) e os desenhos se vestem de límpido azul. Em torno da mesa coberta de branco rendado, se acomodam minha avó e suas amigas. Sobre ela há uma meticulosa variedade de petit-fours dispostos em pratos perolados, há o brilho polido dos talheres, há a imponência do majestoso bule, há a delicadeza bordada nos guardanapos... e como numa ciranda que dança ao cair da tarde, a madura elegância dos quatro pares de mãos vão dando movimento a tudo isso.
Aninhada no aveludado da poltrona que se alinha à decoração da sala, meu olhar ávido, de menina, se entretém no percurso e na intenção de cada gesto, em cúmplice parceria com os ouvidos, atentos, que brincam de decifrar os diálogos.
Mas de todos os encantamentos que este momento, repetido (ou prolongado) todas as semanas na despedida de um de seus dias, trouxe à criança que “espiona” o universo dos adultos e seus códigos complicados, há um que ainda me invade os sentidos, os enlaça e os convida a rodopiar... rodopiar num palco de porcelana tocada na ponta dos dedos... vestidos com esvoaçantes, translúcidas e mornas sedas de vapor... perfumados com um amadeirado misturado ao silvestre de folhas de arbusto queimado... e os aplausos ecoam no corpo e na alma quando, num gole, o sabor do líquido nos aquece a boca e o peito. É o chá!
Para apreciar verdadeiramente um chá genuíno, não recorra à tecnologia dos tempos modernos, por isso dispense o “saché” e prepare-o com a própria erva, em infusão. Tome-o numa xícara ou caneca, mas que sejam de porcelana e, por fim, não use açúcar ou adoçante, porque estes alteram o seu sabor original. Ah, e para que o seu paladar o envolva generosamente, não o deixe esfriar, ingira-o ainda quente, naquela temperatura que parece precisar de uma ou duas leves assopradas.
Se Saint-Exupéry já dizia que o essencial é invisível aos olhos, pois só se enxerga bem com o coração, eu diria que não basta tomar o chá, é preciso sentir-lo em todos os seus nuances. O chá é o verso de um ritual poético, conferindo a quem o bebe uma leitura pessoal.